sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A Grande volta do Xingu


Naquela noite, a lua se derramava em prata nas terras do Paquiçamba. Noite de lua cheia,  clareando a imensidão... A ela se unia o canto do uirapuru, agudo e triste, varando o adentro-fora da mata, penetrando as entranhas do mundo.  Ao seu canto, dançavam serenas as águas do Xingu, serpenteando por terras indígenas e ribeirinhas tantas... Em alguns trechos, revoltas cachoeiras, metiam medo em qualquer um.

Na aragem dos ventos, o assombro e o espanto corriam soltos, afinal chegara a verdade. A passos largos, chegara. Impossível escapar. Não adiantaram protestos, indignação, nada... A construção da usina, já não era mais uma lenda, pois os primeiros sinais da obra tornavam-se evidentes, mudando o cenário e a rotina local. Logo, logo, o Grande Rio inundaria tudo por aquelas bandas, matando bichos, plantas e gente _ um montão. Em suas profundezas dormiriam submersas culturas, lendas e cantigas. O que  não fosse inundado, também estava deveras  ameaçado. Apenas a Mãe D´água guardaria em seu reino, tudo quanto por ali fora um dia. Era o tal progresso – diziam. Por isso a floresta gemia e  cantava triste o uirapuru. Tudo medonho  demais!  Bichos fugiam, buscando abrigo. Gente partia, ao deus dará.

Sem eira, nem beira, eu também partia, naquela balsa lotada, quase sem espaço... Eu  me ajeitei num canto, enrolando um cigarro. Foi neste momento  que de mim se aproximou um índio juruna. Ele trazia cinzas e sepulcros no olhar. Contou, envergonhado, que era filho de um cacique que se vendera aos brancos, dividindo toda a tribo.  Revoltado, rompeu com o pai e agora ia buscar seu destino, aonde,  sabia não...  Tirou do embornal uma flauta de bambu e por instantes, tocou canções de seus ancestrais. Depois pegou um cachimbo na algibeira e me disse:

– Moço, deixa seu cigarro, fuma meu cachimbo. Dentro dele erva poderosa, clareia   visão.

Tragando fundo, fumei a erva, juntamente com o índio. A fumaça ziguezagueava no ar, com seu cheiro exótico, se espalhando na embarcação.  Não demorou muito e outros  se juntaram a nós, partilhando as imagens. Quem não quis fumar, simplesmente foi para outro lugar, sem reclamações.

Ali se encontravam índios de várias  tribos, algumas, inimigas seculares entre si. Mas agora, todos dividiam a mesma sina; qualquer rixa antiga tornava-se  volátil,  puro éter exalando ao vento. Besteira qualquer briga ali,  besteira...  Outros eram  moradores das  palafitas,  pescadores, extrativistas.  Igualmente, dependiam da floresta e de suas terras foram expulsos, como cão sem dono.

Quem foi indenizado, recebeu coisa pouca, mal daria para sobreviver, aonde quer que fosse. Cada um carregava consigo a certeza: para as novas reservas concedidas pelo governo, ninguém ia não.  Lá a vida seria difícil em demasia. Sem sombra de dúvida, a Belo Monte faria de muitos deles forasteiros a vagar...

A balsa rompia madrugada adentro, de espaço em espaço aportando rápido, apenas para deixar ou apanhar passageiros. Num alto mastro tremulava uma bandeira gasta, com um nome bem grande: Esperança – eis o nome da embarcação, velha e enferrujada. Nela embalávamos os sonhos tão mirrados, junto a tralhas e alguns míseros tostões.  Sob o clarão da lua, a Esperança deslizava apitando alto, antes de cada parada, acordando o que em nós adormecia trancado. Talvez isto  fosse o único sinal  de que em nós a vida ainda habitava. Teimosamente.

Adeus! Adeus!... Acenavam-nos castanheiras, seringais, igarapés, povoados e  ilhas xinguanas... Vez ou outra se ouvia um suspiro fundo ou o soluço de alguém. A maioria das crianças e mulheres dormia mal acomodada. Somente poucas mulheres permaneciam acordadas, tentando em vão animar a nossa noite, com risos e provocações.

Das águas, histórias espocavam brumas, em línguas diversas, embaçando o entendimento. E em mim respingavam encantamentos, encharcando-me, enluaradas. Traziam gosto de castanhas, guaraná e açaí.  Em outras reluziam  peixes e escamas se debatendo no arpão. Também a fome, o riso, o grito... Ouvir e contar histórias, este era o jeito de espantar nossos fantasmas e sentir que a vida ainda valia qualquer coisa, mesmo que fosse um fiapinho de quase nada.

Lentamente desfalecia a madrugada, enquanto uma senhora debulhava um terço e um  pajé delirava  outras viagens. Com  o juruna, conversei quase toda a noite e  já me sentia íntimo o bastante, para lhe perguntar o nome. Das cinzas e sepulcros, ele me respondeu:

– Messias. Meu nome é Messias.  Mas índio juruna gosta de  chamar Yudja.
– E o que quer dizer Yudja?
– Dono do rio. A gente é dono do rio...

A fumaça impregnada no ar deixava a cabeça  leve e o tempo boiava suspenso, em claraboia de água e luz. Até que pouco a pouco, os primeiros raios de sol douravam as planícies. Densos de aurora, desembarcamos na última parada. Ao todo, éramos quase  uns  cem, os sem destino, contemplando, quem sabe, pela última vez, aquela paisagem.

A fome apertava e imprevisível era a  jornada. De nossas matulas dividimos o de comer e beber, priorizando as crianças. À sombra de um cupuaçu, nos esperavam paus de arara, em péssimas condições. A gente se ajeitou como pôde, ao sabor da sorte, seguindo viagem por um trecho de terra batida e esburacada. Não demorou muito e surgiu à nossa frente a Transamazônica: comprida, misteriosa. Nela nos aventuramos de corpo e alma. Intenso era o momento! Quanto mais estrada se ganhava, mais  aquela gente perdia: identidade, linhagem, nome... Quase tudo, estirado no caminho.

Finalmente chegamos a Belém, de onde cada um seguiria seu rumo... Antes de partir, abracei forte Yudja.  Esboçando um sorriso pálido, ele me desejou boa sorte e me presenteou com sua flauta. Assim nos despedimos.


Já faz algum tempo que tudo isso aconteceu. Desde então as noites enluaradas refletem em mim estas lembranças e ouço ao longe o canto do uirapuru... Assim vislumbro a Esperança e sua gente, especialmente Yudja.  Tudo isso virou neblina, ofuscando meu olhar...